(Reportagem originalmente publicada pelo TJGO)
Após mais de 18 anos decorridos desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no País com a composição de Conselhos Tutelares para ajudar a proteger crianças e adolescentes que se encontram em alguma situação de risco, um levantamento inédito e minucioso da Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás (CGJGO) sobre a situação dos Conselhos Tutelares do Estado mostra que 100% dos conselheiros eleitos pela comunidade não recebem qualificação para o exercício da função. Apenas 38% deles tem formação continuada e, embora exista um número elevado de ocorrências de trabalho infantil, que atinge o percentual de 63%, o estudo aponta que 56% dos profissionais que atuam nos Conselhos também não têm capacitação específica nas questões relacionadas ao combate do trabalho infantil.
Outro dado alarmante diz respeito a precariedade das estruturas física e humana dos conselhos, uma vez que, conforme demonstra a pesquisa, 71% não têm sede própria, 65% não têm cômodo reservado para o atendimento em razão de espaço físico inadequado e 61% não têm acessibilidade para pessoas portadoras de deficiência. Mais de 40% dos Conselhos só dispõem de um computador para a realização do trabalho cotidiano e apenas 37% contam com um notebook. Equipamentos indispensáveis para a execução do serviço como impressoras multifuncionais, além de bebedouro e refrigerador são cedidos pelo SDH e 44% dos Conselhos não tem relatório estatístico.
Em 87% dos casos, segundo revela o levantamento, o Conselho Tutelar é acionado para acompanhar o transporte de adolescentes infratores, mas 56% os profissionais utilizam carro próprio no cumprimento desse dever. A maioria expressiva, mais de 50%, não tem motorista e 83% não possui veículo oficial. Somente 50 unidades têm grades, cinco são dotadas de câmera de segurança e duas contam com cerca elétrica, apesar de um grande número de Conselhos estarem equipados com arquivos (124).
O estudo também demonstra que embora exista previsão na lei orçamentária municipal com disponibilização de recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar, 85% da verba do FMDCA não é utilizada para a remuneração dos conselheiros tutelares e 80% não são destinadas ao funcionamento dos conselhos. Somente 2% desses profissionais têm um salário superior a R$ 2,5 mil, sendo que 45% recebe somente um salário mínimo. O relatório aponta outra realidade cruel, já que 63% dos conselheiros cumprem uma carga horária de trabalho superior a 40 horas semanais, sem contar os plantões.
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Por determinação do juiz, 91% das crianças e adolescentes são encaminhadas pelo Conselho Tutelar a entidades de acolhimento e em 71% das situações existem fiscalização por parte dos Conselhos às entidades de cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado (delegacias de polícia e Centros de internação) e 54% em meio aberto (prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida). Em 83% dos casos, os Conselhos Tutelares realizam o acompanhamento durante o acolhimento e em 69% das situações providencia o afastamento da criança/adolescente do trabalho infantil.
Registro manual e ausência de equipe técnica
São registrados 99% dos casos que chegam ao Conselho Tutelar, a maioria ainda manualmente e em livros (166 registros) e o restante no computador (69) ou através do Sipia (5). O levantamento evidencia que 99% dos conselhos tem a quantidade total de integrantes (5) e que em 67% o quadro de suplentes também está completo. Com relação ao apoio de outros órgãos ou entidades da Rede de Proteção, o Conselho Tutelar mantém uma articulação em 87% dos casos com o Sistema de Saúde, CREAS e CRAS, Poder Judiciário e Centros de Internação (semiliberdade).
Em 69% dos locais onde funcionam os conselhos, não existe auxílio de uma equipe técnica específica para avaliar os casos (psicólogos e assistentes sociais) e em 79% das situações são utilizados profissionais dos CREAS e CRAS. Entre as principais dificuldades enfrentadas, além da ausência de qualificação profissional, de acordo com o relatório da Corregedoria, estão a falta de materiais básicos para o cumprimento das requisições e a ineficiência de políticas públicas. Entre os maiores registros de ocorrência contra os conselheiros tutelares estão em primeiro lugar a ameaça (33 registros) seguida de agressão (27) e tentativa de homicídio (4).
Sensível à questão, o corregedor-geral da Justiça de Goiás, desembargador Walter Carlos Lemes, disse que é preciso tomar providências sérias e emergenciais com a adoção de medidas conjuntas e parcerias com os outros Poderes e órgãos ligados a Infância e Juventude para dar condições dignas de trabalho aos conselheiros, investir em capacitação e dotar os conselhos de sede própria, resgatando, assim, a dignidade desses profissionais e reconstruindo valores até então deixados de lado pelas próprias autoridades responsáveis. “A situação dos Conselhos em Goiás é muito preocupante. Já temos um norte traçado por esse importante diagnóstico da Corregedoria e a partir dele é necessário com urgência tomar medidas conjuntas para sanar essas dificuldades decorrentes de uma série de problemas de ordem estrutural, financeira e humana. Não podemos ficar inertes diante dessa situação”, acentuou.
Por essa razão, segundo explicou o corregedor-geral, a Corregedoria teve a iniciativa de realizar esta semana uma reunião com membros dos Ministérios Públicos de âmbito Estadual e do Trabalho, além de representantes dos Poderes Executivo e da área da Infância e da Juventude, na busca de soluções imediatas que auxiliem na resolução do problema enfrentado pelos Conselhos Tutelares em Goiás. “Várias deliberações já foram tomadas nesse encontro, entre elas a elaboração de uma pauta entre a Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás (CGJGO) e vários órgãos ligados a área da Infância e da Juventude a fim de capacitar os conselheiros tutelares. É preciso união, esforço concentrado e boa vontade para que cheguemos a uma alternativa viável que possa garantir o melhor funcionamento desses conselhos e dignidade a todos que atuam nesta seara tão importante e delicada”, ressaltou.
Ao deixar claro que é preciso colocar em ação iniciativas efetivas na resolução dessa situação, a juíza Sirlei Martins afirmou que de não adianta a confecção de um relatório tão bem feito se a sociedade não tiver uma resposta eficaz, com soluções práticas. “Todos temos nossa parcela de responsabilidade e temos que enfrentar de frente o problema agindo juntos e mobilizando os outros poderes. Somente assim poderemos de fato modificar essa realidade que afeta uma das áreas mais complexas e frágeis que é a Infância e Juventude”, realçou.
Dedicação e afinco
O relatório, concluído nesta gestão, levou mais de um ano para ser concretizado e a equipe da Corregedoria chegou a percorrer cinco cidades em um dia. No total, foram visitados 247 municípios do Estado, todas comarcas do Poder Judiciário e seus respectivos distritos judiciários. Em algumas localidades, os conselheiros não têm celular para o plantão com chamadas de urgência e usam o particular, conforme consta das observações complementares inseridas no relatório apresentado pela CGJGO.
O diagnóstico feito pela CGJGO demonstra que os prédios onde funcionam os Conselhos Tutelares geralmente são das prefeituras locais e os móveis estão em péssimas condições, as salas de atendimento não têm privacidade, o espaço é inadequado e sem privacidade e em muitos locais não há ventilação, nem luz. Faltam também funcionários para prestar serviços básicos de atendimento, de secretaria e zeladoria e até de limpeza.
Alguns exemplos da gravidade do problema estrutural que atinge os Conselhos Tutelares nos municípios goianos estão expostos no relatório. Um deles é Itaguaru, onde a sede do Conselho Tutelar funciona em uma residência que é dividida com o Centro de Reabilitação Local, cujo imóvel é alugado pelo município. Apenas dois cômodos são cedidos para o atendimento, que não tem caráter sigiloso. Mesas, cadeiras, armários e bebedouros são elementos fictícios.
Em Goianira, falta gás de cozinha, água potável e kits básicos de higiene no prédio do Conselho Tutelar e a porta dos fundos é trancada com o cabo de um rodo de madeira. Os utensílios são usados, e não há computador, internet, impressora ou linha telefônica. “É nessa situação vergonhosa que os conselheiros trabalham e recebem a comunidade e as crianças. Em várias unidades já houve corte de energia elétrica e água por falta de pagamento, não existe telefone fixo, nem sanitários para o público interno. “Chegamos a presenciar situações em que crianças abusadas e sozinhas tinham que passar por um longo corredor para chegar até a sala de atendimento do Conselho Tutelar. Pelo constrangimento, muitas desistiam no meio do caminho. Os conselheiros tutelares estão literalmente pedindo socorro”, alerta emocionado o assessor correicional Paranahyba Santana, que esteve à frente desse raio x.
Na opinião de Paranahyba Santana, esse é um dos trabalhos mais intensos e de maior complexidade da sua trajetória profissional, que completa 36 anos de atuação no Poder Judiciário. “Vimos um pouco de tudo ao percorrer todos os Conselhos Tutelares do Estado, desde a falta de estrutura mínima para o trabalho à ausência absoluta de qualificação profissional para lidar com situações diversas envolvendo crianças e adolescentes. Precisamos de humanidade, de abrir nossos ouvidos e nosso coração para essas pessoas, pois juntos poderemos combater de frente todas essas discrepâncias, que tornam indigno um dos trabalhos mais louváveis que existem que é a proteção às nossas crianças e adolescentes em situação de risco”, comove-se.
O atraso de até três meses no salário dos conselheiros e o não pagamento de benefícios sociais, previstos na Lei Federal nº 12.696/12, objeto de ação judicial já proposta pelo Ministério Público, também estão entre as informações complementares do relatório. O trabalho de campo por Paranahyba Santana e a coordenadoria das atividades ficou a cargo da assessora de Orientação e Correição da Corregedoria, Maria Beatriz Passos Vieira Borrás.
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