(Texto originalmente publicado por Carlos Sena Passos, em 15/01/2015, sobre a Feira Hippie de Goiânia e Antônio Poteiro)
Mudei-me para Goiânia em 1973. Aqui eu trabalhei por um curto período no comércio varejista, mas logo descobri a minha vocação à autonomia do mundo artístico como sendo a única possibilidade de dar asas para os meus sonhos juvenis, naqueles duros tempos de cerceamento absoluto da liberdade de expressão, o que acabou por possibilitar algumas reações da juventude àquela realidade tão rígida, tão cheia de regras e proibições. Reações que vieram na forma de engajamentos políticos dos diversos movimentos estudantis e/ou manifestações artísticas de vanguarda; essa reação possibilitou ainda, a expansão no Brasil do movimento hippie internacional. Os primeiros hippies que eu vi foi em Belo Horizonte e fiquei completamente fascinado: aquilo para mim era a expressão máxima tanto da modernidade, quanto da liberdade com qual eu sonhava.
Os hippies em plena ditadura se alastravam como praga nacional, com a sua ideologia do “Paz e amor” reforçada pelo visual anti-moda de roupas fantasiosas, cabelos rebeldes e toda sorte de adereços. Algo muito diferente dos chamados “bichos grilos” atuais, alcunha preconceituosa que a sociedade desenvolveu posteriormente para classificar aos vendedores de bijouterias nas calçadas e praças das cidades grandes, como um rótulo negativo para as suas aparências descuidadas, às vezes até meio-sujas. Embora estes sejam os legítimos herdeiros da tradição de “vida alternativa” imprimida pelos antigos hippies, que quase sempre, tinham suas subsistências baseadas na produção de artesanato. E era essa produção de artesanato que garantia a vida das suas comunidades nos anos 70. Assim proliferou nas urbes, um mercado com toda sorte de manufaturas hippies: de couro, madeira, metais, tecidos tingidos, roupas bordadas, e também de bijuterias.
Nesse momento, não existia uma cidade grande no Brasil que não estivesse aderindo ao fenômeno de escoamento da produção desses produtos alternativos através das famosas “Feiras Hippies”, que brotavam sem parar. Eram nelas que se vendia o artesanato criado pelos hippies para enfeitar a juventude da classe média que não tinha coragem de sair de casa para experimentar o mundo da vida alternativa, mas que sonhava se parecer com eles. Isso gerou outro fenômeno paralelo: a moda hippie. Uma boa parte da juventude se dividia entre: os alternativos artesões hippies; a classe média travestida de hippie que consumia os seus produtos nas feiras; e a classe rica que aderiu mais tardiamente ao fenômeno moda hippie quando a sua estética foi cooptada pelo mercado da moda e comercializada por lojas especializadas – esses eram chamados de hippies de boutique.
Foi nesse mundo que eu me engajei, fantasiado, montei uma banca de camisetas pintadas, à mão, na Feira Hippie da Praça Cívica, e todas as semanas, durante dois anos, foi ali que eu comercializei as camisetas que exibiam as caras do mundo pop musical de então: Mick Jagger, David Bowie, Alice Cooper, Tina e Ike Turner, Secos & Molhados, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e muitos outros da cena rock and Roll ou do Tropicalismo dessa época; exibia também carinhas de bonecas rechonchudas em camisetas infantis, que as jovens “cocotas” de então compravam para vestirem como se fosse mini-blusas, usando-as com longas saias indianas, bem baixas nos quadris, para mostrarem os umbigos e a pelugem dourada das barriguinhas saradas e tostadas de sol, como mandava a moda naqueles tempos.
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Em minha primeira incursão como artesão naquela feira eu fui acompanhado de Xisto (meu irmão), que, assim como eu, também estava fantasiado de hippie. Fomos nessa aventura levando uma dúzia de camisetas Hering de 12 anos e oito camisetas infantis de 2 anos, muito coloridas e com esse apelo de terem os seus tamanhos bastante reduzidos, mas propondo que deveriam serem usadas por jovens e adultos de forma bastante justa, colada mesmo ao corpo como se fora uma segunda pele, como a moda hippie então solicitava.
Nesse dia, eu levei também a minha máquina fotográfica Tuka, com o intuito de registrar o visual de alguns hippies e também o meu e o do Xisto. Fiz a minha foto na minha banca, se é que posso chamar assim uma cortina plástica de banheiro estendida no chão, onde eu dispus as camisetas. O Xisto me disse: a minha foto eu quero tirar na banca do velhinho dos potes enfeitados. E assim fizemos: ele agachou frente à banca do “S.” Antonio, na verdade, a banca dele, era apenas alguns jornais espalhados na calçada, sobre os quais ele apresentava a sua mercadoria que era transportada até ali num carrinho de mão, desses de construção. Comentava-se na feira que ele vinha desde o Jardim América transportando essa carga.
S. Antonio ficou mais algum tempo nessa feira, mas logo depois desapareceu. Eu só voltei a vê-lo novamente alguns anos mais tarde, quando então eu era aluno do Instituto de Artes da UFG, e visitando uma exposição na Casa Grande – Galeria de Artes na Rua oito me apresentaram a ele como sendo o artista Antônio Poteiro. Agora ele cultivava uma bonita barba branca, que no antigo registro da Tuka ainda era nascente. O resto da história dele eu não preciso contar aqui, porque é bem conhecida por todos vocês.
(Conheça o instituto Antônio Poteiro, no Jardim América, em Goiânia)
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