E essa “nova política”, hein? Tem condição de ser implantada em nossa cultura? Primeiro, o conceito: nos termos em que o presidente Bolsonaro a defende, significa o abandono da prática do “toma lá dá cá”, do jogo de recompensas que é eixo do presidencialismo de coalizão. Como é tradição, partidos que elegem o mandatário-mor se acham no direito (com razão) de indicar quadros para compor a estrutura administrativa.
Essa é uma prática dos países que cultivam a democracia representativa. Portanto, tem cabimento o compartilhamento do governo entre quadros técnicos, burocratas e perfis políticos. Ocorre que as indicações políticas têm dado origem aos “feudos”, espaços que representantes consideram seu domínio, propiciando negociatas e atendimento a interesses pessoais. A res publica é usada como negócio privado.
A crise crônica que corrói a administração pública por nossas plagas se origina, portanto, da interpenetração de territórios, o público e o privado. Dessa imbricação, formam-se as teias de corrupção pela malha administrativa. Certamente, ao dizer que quer governar com a “nova política”, o presidente Jair Bolsonaro tem em mente a eliminação das falcatruas que acabam ocorrendo nessas fazendas.
Mas não se muda uma cultura política da noite para o dia. Não será apenas com negação que o mandatário abolirá velhos costumes. Sem o apoio dos congressistas a administração federal fenecerá. A alternativa é a aceitação de indicações políticas carimbadas com o selo técnico. Ou seja, os indicados devem ser pessoas afeitas ao cargo. A especialização se faz necessária.
Sob essa condição, o modus operandi pode ser bem- sucedido. Os antros de corrupção diminuirão sensivelmente, até porque a transparência e os controles da máquina pública constituem a boa nova do ciclo de transição que o país vive. Mas sejamos realistas: o Brasil só encontrará seu prumo administrativo no dia em que por aqui se instalar o parlamentarismo. Um sistema parecido com o francês poderia dar certo.
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No parlamentarismo, a máquina do governo fica imune às crises cíclicas. Por ocasião do momento crítico sofrido pelo primeiro-ministro, que comanda o governo, ele deixa ao cargo ao receber o voto de desconfiança do Parlamento. A estrutura administrativa continua a trabalhar sem alterações em sua rotina e processos. Os quadros técnicos, todos ocupados por especialistas, não deixam a peteca cair.
Na França, a segurança com essa modalidade governamental conta com o suprimento de mão de obra fornecida por excelente instituição de formação de administradores públicos – a ENA (Escola Nacional de Administração). Fundada pelo general De Gaulle, em 1945, forma a elite da carreira pública. Dela saíram, por exemplo, Jacques Chirac e Valéry Giscard D’Estaing, ex-presidentes da França; Dominique de Villepin, diplomata de carreira que foi primeiro-ministro francês entre 2005 e 2007; e Pascal Lamy, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio.
Qual a possibilidade de instalarmos o parlamentarismo por aqui? Estreita. Fizemos dois plebiscitos: o de 1963, de 11 milhões de votantes, 9,5 milhões votaram pelo presidencialismo e apenas 2 milhões pelo parlamentarismo; o de 1993, deu 55% para o presidencialismo e 25% para o parlamentarismo. O presidente simboliza a fortaleza da política.
A semente presidencialista, com seu “poder da caneta”, viceja em todos os espaços. O termo presidente faz ecoar significados de grandeza, associa-se com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com o poder de mando e desmando. Até no futebol, o presidente é o manda-chuva. O chiste é conhecido: ato mais importante da partida de futebol, o pênalti deveria ser cobrado pelo presidente.
A propósito, em 1980, no final do campeonato brasileiro, o Flamengo ganhou de 3 a 2 do Atlético Mineiro, em polêmica partida disputada no Maracanã. O árbitro expulsou 3 jogadores do Atlético, a bagunça tomou o campo e agitou os nervos. Ao final, transtornado com o “resultado roubado”, Elias Kalil, presidente do Atlético, exclamou aos berros: “vou apelar para o Presidente da República João Figueiredo. Vou falar prá ele de presidente para presidente”. Eis aí pequena demonstração do conceito que o presidencialismo exerce entre nós.
Pois bem, sem parlamentarismo fica difícil aplicar por aqui princípios da “nova política”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato